O dia em que a negritude do ser humano venceu a brancura do papel
Saindo de madrugada e envolto numa conversa agradável com o colega sentado ao lado, praticamente não dormi. Após rápido cochilo, acordei. Despertava o alvorecer quando estávamos prestes a chegar. O sol se expandia maravilhosamente em cores vivas ao horizonte, desviando-se diante dos eucaliptos fincados à terra. Ainda que fosse princípio de manhã ele ardia como chama. Chama. Parecia realmente me chamar àquela luta. Soava como um prelúdio do que estava por vir ao longo do dia. As malditas árvores não mais impediriam o contato direto com a grandiosidade da natureza e do homem.
Vento na cara, fiquei observando o redor da estrada. Verde. Imensamente verde. Deserto, totalmente deserto. Deserto verte. Era ele mesmo que combatíamos, um dos motivos de irmos até lá. Fitei-o por longo tempo, ora olhando entre as frestas e procurando o que se escondia além do horizonte delineado por árvores caprichosamente paralelas e lineares, ora raivoso por me sentir sufocado em meio aquela uniformidade toda. Como dói aos olhos tropicais assitir ao domínio da natureza formatada. E saber que um dia aquilo tudo foi de uma incrível exuberância. Ah, mas nostalgia é conforto dos fracos. As lágrimas não secam enquanto não se lute por isso. Esse era o nosso propósito. Ver o passado revivido sob novos personagens, com a força dos que já se foram refletida e multiplicada no olhar de cada um que hoje estaria munido de coragem.
Se me sentia sufocado durante longos quilômetros daquela viagem, imaginem o que sentiriam os que vivem essa sensação diariamente, todo ano, a vida inteira. Quando parou o ônibus, a primeira vista não poderia ser mais espantosa e angustiante. Esta ali, encravada entre uma mar de eucaliptos a comunidade quilombola. Demarcando o campo de futebol não havia marcas de cal e sim a fronteira com aquelas árvores.
Café, leite, batata-doce e mandioca enchiam as barrigas e sustentavam os sonhos no início daquela manhã especial. Aos poucos o movimento foi crescendo: quilombolas de diversas comunidades, índios, estudantes, sem-terra, pequenos agricultores, todos unidos naquele clima de confraternização. O tempo seguia lento como sempre é na roça, a hora parecia não passar, se arrastando entre papos empolgados e prolongados e a total falta de assunto que sempre tentamos vencer com alguma fala banal.
Até que quando começava a me acostumar com aquilo veio o chamado. Era a hora da ação. Partimos depois de uma pequena mostra da cultura daquele povo. No caminhos as emoções se misturavam. A euforia de ver aquele povo unido e obstinado, cantando por liberdade e dignidade. E novamente a agonia daquela prisão ao ar livre cujas grades rígidas e paralelas não eram feitas de aço, mas de árvores.
Chegando ao local, as vozes negras enalteciam a importância e significado daquilo tudo. Ali era o cemitério dos escravos, onde eram enterrados aqueles que fugiam dos grilhões. Ali estava soterrada a liberdade. Era hora de ressucitá-la, gritá-la, cerebrá-la!
Dessa vez a história se inverteu. Os frágeis eucaliptos não eram páreos para nossa força. Com incrível vigor e rapidez as árvores plantadas eram derrubadas e tomadas sob a bênção dos espíritos que ali jaziam. Nos olhos carregados de vivacidade novamente sentimentos misturados na intensidade absurda do prazer impagável de matar quem te matava, de esganar quem te sufocava.
Vencido o desafio, era hora de comemorar. Ali mesmo no terreno reconquistado, cantar, dançar, integrar. Era preciso também, ainda que simbolicamente, retribuir. E foram plantadas mudas de árvores nativas para que pudessem crescer de novo juntamente com o povo que se reerguia naquele local.
O sol não dava trégua e a fome apertava. Diante do cansaço, o caminho na volta parecia muito mais longo que na ida. Terminado o retorno, o conforto da sombra e a saciedade do almoço farto e saboroso, temperado com a simplicidade daquela gente. Barriga cheia, braços cansados. Sorrisos vitoriosos. Vitória que não significava comodidade, sensação de missão cumprida. Era apenas o começo de uma longa batalha. E, cientes disso, os quilombolas se reuniram. Claro que não cabia a nós interferir no rumo do que eles mesmos criaram. Mas acompanhei-os tomado de grande paz interior.
Aos poucos, o cansaço da noite mal-dormida e do dia intenso foi me vencendo. Apesar do desconforto, tive um bom sono, relaxado, durante a viagem de volta. Adormecido, não tive o sofrimento prolongado de ver passar aquele deserto que tenta cinicamente se disfarçar floresta. Acordado, tive a certeza de que aquilo tudo não foi só um belo sonho.
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Vento na cara, fiquei observando o redor da estrada. Verde. Imensamente verde. Deserto, totalmente deserto. Deserto verte. Era ele mesmo que combatíamos, um dos motivos de irmos até lá. Fitei-o por longo tempo, ora olhando entre as frestas e procurando o que se escondia além do horizonte delineado por árvores caprichosamente paralelas e lineares, ora raivoso por me sentir sufocado em meio aquela uniformidade toda. Como dói aos olhos tropicais assitir ao domínio da natureza formatada. E saber que um dia aquilo tudo foi de uma incrível exuberância. Ah, mas nostalgia é conforto dos fracos. As lágrimas não secam enquanto não se lute por isso. Esse era o nosso propósito. Ver o passado revivido sob novos personagens, com a força dos que já se foram refletida e multiplicada no olhar de cada um que hoje estaria munido de coragem.
Se me sentia sufocado durante longos quilômetros daquela viagem, imaginem o que sentiriam os que vivem essa sensação diariamente, todo ano, a vida inteira. Quando parou o ônibus, a primeira vista não poderia ser mais espantosa e angustiante. Esta ali, encravada entre uma mar de eucaliptos a comunidade quilombola. Demarcando o campo de futebol não havia marcas de cal e sim a fronteira com aquelas árvores.
Café, leite, batata-doce e mandioca enchiam as barrigas e sustentavam os sonhos no início daquela manhã especial. Aos poucos o movimento foi crescendo: quilombolas de diversas comunidades, índios, estudantes, sem-terra, pequenos agricultores, todos unidos naquele clima de confraternização. O tempo seguia lento como sempre é na roça, a hora parecia não passar, se arrastando entre papos empolgados e prolongados e a total falta de assunto que sempre tentamos vencer com alguma fala banal.
Até que quando começava a me acostumar com aquilo veio o chamado. Era a hora da ação. Partimos depois de uma pequena mostra da cultura daquele povo. No caminhos as emoções se misturavam. A euforia de ver aquele povo unido e obstinado, cantando por liberdade e dignidade. E novamente a agonia daquela prisão ao ar livre cujas grades rígidas e paralelas não eram feitas de aço, mas de árvores.
Chegando ao local, as vozes negras enalteciam a importância e significado daquilo tudo. Ali era o cemitério dos escravos, onde eram enterrados aqueles que fugiam dos grilhões. Ali estava soterrada a liberdade. Era hora de ressucitá-la, gritá-la, cerebrá-la!
Dessa vez a história se inverteu. Os frágeis eucaliptos não eram páreos para nossa força. Com incrível vigor e rapidez as árvores plantadas eram derrubadas e tomadas sob a bênção dos espíritos que ali jaziam. Nos olhos carregados de vivacidade novamente sentimentos misturados na intensidade absurda do prazer impagável de matar quem te matava, de esganar quem te sufocava.
Vencido o desafio, era hora de comemorar. Ali mesmo no terreno reconquistado, cantar, dançar, integrar. Era preciso também, ainda que simbolicamente, retribuir. E foram plantadas mudas de árvores nativas para que pudessem crescer de novo juntamente com o povo que se reerguia naquele local.
O sol não dava trégua e a fome apertava. Diante do cansaço, o caminho na volta parecia muito mais longo que na ida. Terminado o retorno, o conforto da sombra e a saciedade do almoço farto e saboroso, temperado com a simplicidade daquela gente. Barriga cheia, braços cansados. Sorrisos vitoriosos. Vitória que não significava comodidade, sensação de missão cumprida. Era apenas o começo de uma longa batalha. E, cientes disso, os quilombolas se reuniram. Claro que não cabia a nós interferir no rumo do que eles mesmos criaram. Mas acompanhei-os tomado de grande paz interior.
Aos poucos, o cansaço da noite mal-dormida e do dia intenso foi me vencendo. Apesar do desconforto, tive um bom sono, relaxado, durante a viagem de volta. Adormecido, não tive o sofrimento prolongado de ver passar aquele deserto que tenta cinicamente se disfarçar floresta. Acordado, tive a certeza de que aquilo tudo não foi só um belo sonho.
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totalmente jornalismo gonzo!
=D
desculpem o tamanho.. mas é como diz o Rei: "sao tantas emoções"